Wednesday, September 30, 2015

Porto Alegre: "Respostas e perguntas a reportagem sobre o Cais Mauá"

Por Adriana Schönhofen Garcia, Eng. Civil, Me Eng & Me Arq



    Cais ©2010 Roni Stundner. All rights reserved. Usada com permissão.


Texto ©2015 Adriana Schönhofen Garcia. All rights reserved. Todos os direitos reservados. versão 4.0
Proibida a reprodução sem autorização por escrito da autora. Para divulgar, compartilhar, etc, fornecer o link a este artigo. Obrigada.
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Antes de entrar no mérito da reportagem publicada pela Zero Hora, dia 27 de setembro de 2015, gostaria de tecer alguns comentários que julgo pertinentes para contextualizar minha manifestação como profissional e, antes de tudo, cidadã.

Porto Alegre não tem a obrigação de aceitar essa proposta “vencedora” como legítima. Numa cidade que preza pela democracia e participação, ela passou por cima de todo mundo. Apoiá-la é apoiar a falta de ética professional, a falta de transparência na seleção do projeto e a incompetência em gerar um design de qualidade.

Além de tentar participar da licitação, escrevi um texto com os pontos preocupantes do projeto. No dia 11 de novembro de 2011 enviei o artigo ao então Governador, ao Prefeito, a todos os vereadores da Câmara. Em outra ocasião enviei a diversas secretarias Estaduais e Municipais, apontando as irregularidades. Alguma coisa mudou? Nada.

(Ver texto “Cais Mauá: Por Que Um Só Vencedor?” 

É assim que se faz projeto de espaço público? Não. Primeiro ouvir a população, depois fazer concurso de arquitetura e DEPOIS buscar os recursos e quem execute.

É preciso também esclarecer à população que não basta citar exemplos de revitalização em outros países, é necessário que se conheça o PROCESSO: como o projeto foi gerado e com que objetivos?

Vamos as considerações sobre sua entrevista:


1. “Se esse pessoal que reclama tem um projeto tão bom, poderia ter apresentado na licitação e vencido. Por que não fizeram isso?”

Primeiramente “esse pessoal”, além dos citados no artigo, são acadêmicos, são engenheiros, são advogados, são geógrafos, profissionais de diversas disciplinas, qualificados, com experiência tanto teórica como prática, no Brasil e no exterior.

A primeira atitude do Consórcio deve ser respeitar quem se manifesta contrário a esse projeto e não tratá-los como “esse pessoal”. Só aí a empresa já revela o tom de desdém à população de Porto Alegre. Se não nos respeitam como cidadãos, irão respeitar nossos anseios para o Cais? Não.


2. “[…] poderia ter apresentado na licitação e vencido. Por que não fizeram isso?”

E quem disse que não tentamos concorrer para oferecer uma contraproposta?

As barreiras foram várias. A completa análise crítica da licitação e do projeto estão no texto escrito em dezembro de 2010 e enviado ao Governador Tarso, ao Prefeito e a todos os Vereadores da época (Ver artigo citado acima)

O fato da licitação ter só um vencedor representa um fracasso administrativo em formulá-la realmente aberta e internacional. Desde o princípio, as diretrizes que nortearam o processo conduziam a esse resultado: a pobre escolha de uns poucos ou apenas um vencedor.

Para  Porto Alegre é vexatório ter só uma proposta. É passar a noção de que o mundo não está interessado em nós e que existe apenas uns poucos arquitetos e empresários que gostariam de desenhar e explorar a área. Isso não é verdade. O fato de termos apenas um vencedor é resultado de uma licitação mal elaborada, mal divulgada e mal conduzida.

Desde de 2010, profissionais de Arquitetura, Direito, Engenharia e outros questionavam como foi possível permitir que os mesmos profissionais e as mesmas empresas que fizeram o estudo do projeto para o Cais, que serviu de base para a licitação, foram também os vencedores? Essa pergunta não foi respondida. A lei federal de licitações proíbe que participe da licitação quem tenha trabalhado no estudo que definiu suas diretrizes. Só esse fato, por si só, já anularia a licitação. Precisamos desta resposta.

2.a) O que diz a lei de Licitações?
“O Art. 9 o incisos I e II da LEI Nº 8.666, DE 21 DE JUNHO DE 1993, que “[…] regulamenta o art. 37, XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública”.
"Art. 9o Não poderá participar, direta ou indiretamente, da licitação ou da execução de obra ou serviço e do fornecimento de bens a eles necessários:
I - o autor do projeto, básico ou executivo, pessoa física ou jurídica;
II - empresa, isoladamente ou em consórcio, responsável pela elaboração do projeto básico ou executivo ou da qual o autor do projeto seja dirigente, gerente, acionista ou detentor de mais de 5% (cinco por cento) do capital com direito a voto ou controlador, responsável técnico ou subcontratado;
III - servidor ou dirigente de órgão ou entidade contratante ou responsável pela licitação.
§ 1o É permitida a participação do autor do projeto ou da empresa a que se refere o inciso II deste artigo, na licitação de obra ou serviço, ou na execução, como consultor ou técnico, nas funções de fiscalização, supervisão ou gerenciamento, exclusivamente a serviço da Administração interessada.
§ 2o O disposto neste artigo não impede a licitação ou contratação de obra ou serviço que inclua a elaboração de projeto executivo como encargo do contratado ou pelo preço previamente fixado pela Administração.
§ 3o Considera-se participação indireta, para fins do disposto neste artigo, a existência de qualquer vínculo de natureza técnica, comercial, econômica, financeira ou trabalhista entre o autor do projeto, pessoa física ou jurídica, e o licitante ou responsável pelos serviços, fornecimentos e obras, incluindo-se os fornecimentos de bens e serviços a estes necessários."

Não seria esse um vício de origem? A população de Porto Alegre precisa de respostas.


2.b) Também faltaram os anexos da licitação, que não foram publicados no site do governo do Estado juntamente com a licitação. E que quando solicitados não foram fornecidos. Como competir com informação incompleta? Ao longo destes anos, várias pessoas tentaram ter acesso a diversos tipos de informação e não foram atendidas. Segundo manifestações durante a audiência pública de 18 de setembro de 2015, o acesso à informação é direito garantido pela Constituição. Num país sério, unicamente este fato já seria suficiente para anular a licitação.

2.c) O tempo de três meses entre o lançamento da licitação e a apresentação da concorrência foi inexequível, até porque não tínhamos o grupo empresarial montado. Apenas o vencedor tinha (uma vez que já estava trabalhando por três anos no estudo, conforme informação na mídia). Não tínhamos a parceria pronta de escritório de arquitetura, empresa de engenharia e de gestão imobiliária.

Conseguimos buscar parcerias, mas não foi possível fechar todos contratos e ainda desenvolver o projeto no nível de detalhamento da licitação em apenas três meses (que aliás até agora não foi mostrado pelo vencedor, até agora não se viu o projeto com as exigências de detalhe exigidas).

Levantei essas questões e outras num segundo artigo “Licitação do Cais Mauá e pontos preocupantes” de 12 de agosto de 2010.



3. “Como serão as torres e o shopping center, que têm provocado maior polêmica?

"Não chegamos à fase do detalhamento executivo dessas áreas.” resposta `a reportagem.


As imagens da proposta “vencedora” ainda são conceituais. Será que ela realmente cumpriu com o que foi exigido? Onde estão os desenhos? Será que foram fornecidos em outubro de 2010? E que critérios foram usados nos itens de avaliação? Que notas o projeto recebeu? Como avaliar, por exemplo, a acessibilidade universal, item exigido na licitação, sem desenhos? 


4. “O que temos é uma concepção arquitetônica, e os detalhes são esmiuçados no Projeto Executivo, 

Verdade? Então a licitação não está sendo cumprida no seu item IV, página 45 da licitação?:

“IV- A Arrendatária deverá apresentar o Projeto Executivo, em plena consonância com sua proposta de Metodologia de Execução, no prazo máximo de 120 dias (cento e vinte dias) após a assinatura do Contrato de Arrendamento.”

O contrato de arrendamento foi assinado em 23 de dezembro de 2010. Cento e vinte dias depois foi dia 23 de abril de 2011. Estamos em setembro de 2015 e ainda estão na concepção arquitetônica? Portanto, onde está o Projeto Executivo de tudo? De todas as edificações?


5. “Não há como gerar receita suficiente e pagar todos os custos apenas locando os armazéns. Teremos um alto custo de manutenção, segurança do local, funcionários, obras de esgoto, luz, água, e ainda vamos construir 10 praças, revitalizar uma abandonada,
sem falar no arrendamento que pagamos para o Estado.” 

Precisamos de grandes investidores privados? Não. Abaixo explico os porquês.

  1. Primeiramente, o Cais Mauá já estava revitalizado. Revitalização não significa a construção de novas edificações. Revitalização, no sentido amplo, significa a ocupação do espaço público de modo positivo (não degradante) e acessível à toda comunidade, não excludente. O Cais já acomodava a Ospa, o pier do Cisne Branco, Bienais e a Feira do Livro. Morto total não estava. O que o Cais precisa é de REFORMA, não revitalização.

  1. O valor da recuperação das estruturas existentes, sem incluir restaurantes, novas instalações e nem áreas externas, calculado com base no CUB da época e nas áreas das edificações do Cais, fornecidas pelo próprio texto da licitação, era de R$ 26.358.132,46 (valor de 2010). Portanto, o custo é realmente baixo e não centenas de milhares de reais.

  1. De onde viriam os recursos para a reforma e manutenção?
O projeto atual do Cais prevê a destruicão de pavilhões, porque não são tombadas. O que não é tombado também tem valor e muito! O conjunto tem valor. Devemos mantê-los todos.

As previsões de rendimento e geração de emprego de empreendimentos novos e padrões, como os dos projeto do Cais em questão, são fáceis de calcular, de prever, Entretando prever valores  para a arquitetura de excelência com a preservação da identidade de uma cidade entram no âmbito do intangível, extremamente difícieis de serem previstos. Em tais situações cria-se o efeito de 'bola de neve', devido às ramificações a diversas indústrias de serviços e o surgimento de novas. Nem o melhor dos estudos econômicos poderia prever que a unicidade na preservação arquitetônica de South Beach, por exemplo, pudesse contribuir à geração de bilhões de dólares ao ano. Na dúvida, preserve.

Miami Beach estava em decadência na década de 1970, com níveis altíssimos de homicídios. A conversa dos empreeendedores era a mesma: destruir os prédios baixos e construir torres de hotéis na Ocean Drive porque iria gerar empregos, impostos de turismo, e que os prédios Art Deco não eram históricos, blá, blá, bla’... 

Destruíram vários, mas um movimento duríssimo da comunidade conseguiu salvar a maioria do Art Deco District. Em 1976, Bárbara Capitman iniciou uma campanha e formou a Miami Design Preservation League. Alguns prédios só foram salvos porque as pessoas se amarraram neles. Hoje Miami Beach é fundamental na geração de bilhões de dólares ao ano porque seu Art Deco District é único, é a identidade da cidade, é um dos lugares mais visitados no mundo. Eventos, filmes, turismo, fotografia, congressos, feiras de arte, nada disso existiria se não tivessem sido preservados. A história prova que preservar é mais lucrativo. E detalhe: a recuperação das estruturas foi feita pela própria comunidade, com pequenos investidores privados.

Em 1979, “O Centro Histórico Arquitetônico de Miami Beach (popularmente conhecido como o " Art Deco District" e "Old Miami Beach") foi listado no Registro Nacional de Lugares Históricos. Foi o primeiro distrito histórico do século 20 da nação.”


E a manutenção do Cais? Há necessidade de que o Cais gere receita para se manter? Há necessidade que dê lucro? No caso do Cais há a necessidade de que seja SUSTENTÁVEL economicamente, o que é uma visão social e não comercial.

A locação dos espaços somada a doações de fontes diversas podem manter o funcionamento e a manutenção do Cais. O fato de os pavilhões serem um conjunto de espaços vazios, sem definição de funções, faz com que representem um exemplo contemporâneo de uso, de espaço flexível.

Uma cidade precisa de espaços flexíveis para acomodar diferentes eventos durante o ano inteiro. Porto Alegre está entre as primeiras em número de feiras ao ano. Organizadores de feiras de tecnologia, por exemplo, também manifestaram que desejavam realizar feiras no centro, mas não haviam sido ouvidos na proposta atual. Essa manifestação ocorreu na Câmara de Vereadores de Porto Alegre, em 22 de junho de 2011. A audiência foi gravada.

Não há recurso? Há fund-raising, há fundações, há filantropia, há o pequeno investidor internacional, há patrocinadores e há profissionais especializados em desenvolver projetos de captação de recursos.

É inadimissível usar o termo dar “um presente” para a população. Isso é uma atitude prepotente, não democrática. Não queremos apenas saber o que tem dentro do pacote, queremos escolher o presente.

Não cabe, nos dias de hoje, com toda a metodologia de gestão participativa existente no mundo, a exemplo da que é praticada há décadas nos Estados Unidos e de tecnologia de software que permite a colaboração de milhares de pessoas, que a população não tenha sido convidada a participar.

Links de processo participativo praticado pelo American Institute of Architects (AIA):

- Do site do IAB RJ, ARTIGO e VIDEO agosto de 2015:

“AIA investe no engajamento comunitário para planos urbanos”


- Do site do IAB-RS, EVENTO em Porto Alegre, dezembro de 2014. Explicações detalhadas do processo participativo logo após o convite:

 “Dando poder à comunidade através do Projeto democrático de cidade”


- Do site do IAB-RS, VIDEO do evento em Porto Alegre, dezembro de 2014:

 “Dando poder à comunidade através do Projeto democrático de cidade”

 


- VIDEO: Exemplo de reconstrução de Birmingham com a participação da comunidade. Essa metodologia é aplicada em cidades de todos os tamanhos. Vejam como se ouve a comunidade: ANTES de licitação. 
“O melhor processo é aquele em que você usa seus ouvidos”, declara o arquiteto no video (para ouvir a população).


Aceitar esse projeto não é apenas ser A ou B, azul ou vermelho, gremista ou colorado, direita ou esquersa, pró shopping ou contra shopping, etc.

Aceitar esse projeto é ser a favor da violação de seus direitos: direito de participar, direito a um projeto que aumente a qualidade de vida da cidade e o direito à informação.




Adriana Schönhofen Garcia, Professora de Arquitetura, Engenheira Civil, Mestre em Arquitetura, Mestre em Engenharia de Produção.



   Praça de São Marcos, Veneza (Porto Alegre)
     ©2015 Adriana Schönhofen Garcia. All rights reserved. Todos os direitos reservados. 











Tuesday, September 22, 2015

Porto Alegre: "Cais Mauá: Por Que Um Só Vencedor?"

Por Adriana Schönhofen Garcia, Eng. Civil, Me Eng & Me Arq



©2010 Adriana Schönhofen Garcia. All rights reserved. Todos os direitos reservados. versão 4.0
Proibida a reprodução sem autorização por escrito da autora. Para divulgar, compartilhar, etc, fornecer o link a este artigo. Obrigada.

Este artigo foi escrito originalmente em dezembro de 2010. Adicionei algumas poucas fotos novas da época, mas fora isso, o conteudo é o mesmo.

O objetivo era esclarecer à população aspectos que não estavam sendo divulgados na mídia tanto quanto à licitação, aspectos técnicos e exclusão das pessoas no processo de desenvolvimento do projeto. Vários dos parágrafos deste texto já alertavam para os problemas que somente agora estão sendo vistos por toda a comunidade.

Este texto tem sido usado por doutorandos da UFRGS desde 2010, pois é o único texto de análise crítica do projeto.

Alguns exemplos:

1.    Você sabia que desde de 2010, profissionais de arquitetura, direito, engenharia e outros questionavam como que os mesmos profissionais e as mesmas empresas que fizeram o estudo do projeto para o Cais, que constituiu a licitação, foram também os vencedores? Essa pergunta não foi respondida e consta entre os tópicos do documento entregue ao Ministério Público. A lei de licitações federal proibe que quem fez o estudo participe da licitação. O que faz sentido, pois constitui-se conflito de interesse. Só esse fato, por si só, já anularia a licitação. Precisamos desta resposta.

2.    Você sabia que os anexos da licitação não foram publicados no site do governo do Estado juntamente com a licitação? E que quando solicitados não foram fornecidos? Ao longo destes anos, várias pessoas tentaram ter acesso a diversos tipos de informação e não foram atendidas. Segundo manifestações durante a audiência pública de 18 de setembro de 2015, o acesso à informação é direito garantido pela Constituição. Num País sério, unicamente este fato também é suficiente para anular a licitação.

3.    Você sabia que o custo para reformar o Cais é baixo? Que não precisamos de grandes investidores privados? Que recursos nacionais, internacionais, fontes diversas de filantropia, a doação de tempo de profissionais de arquitetura, engenharia e voluntários, e de materias de construção por pequenas empresas são suficientes para reformar o Cais? O valor da recuperação das estruturas existentes, sem incluir restaurantes, novas instalações e nem áreas externas, calculado com base no CUB da época e nas áreas das edificações do Cais, fornecidas pelo próprio texto da licitação, de todas as edificações do complexo como estão, foi de R$ 26.358.132,46. Converta esse valor para  a data atual e verá que reflete o que o grupo vencedor irá investir. Precisamos deles? Não. Falei isso na época, divulguei, fiz palestra, mas não era o momento certo, a população não estava preparada para ouvir.

4.    Você sabia que o projeto prevê a destruicão de várias edificações do Cais porque não são tombadas? O que não é tombado também tem valor e muito! O conjunto tem valor. Devemos mantê-los todos. Aqui em Miami Beach a conversa era mesma nos anos 80: destruir os prédios baixos e construir torres de hotéis na Ocean Drive: ia gerar empregos, impostos de turismo, que os prédios não eram históricos, blá, blá, blá... Um movimento duríssimo da comunidade conseguiu salvar TODO o distrito Art Deco. Alguns prédios só foram salvos porque as pessoas se amarraram neles. Hoje esse distrito preservado gera bilhões de dólares ao ano porque é único, é a identidade da cidade. Eventos, filmes, turismo, fotografia, congressos, feiras de arte, nada disso existiria se não tivessem sido preservados A história prova que preservar é mais lucrativo. E detalhe: nenhum centavo do governo foi usado na revitalização. Apenas o resultado de investimentos de pequenos investidores e ações da própria população.



Fig. 1 Miami Beach, FL: Prédios não tombados e não históricos preservados na década de 80 com muita dificuldade pela comunidade, os quais seriam demolidos para construção de torres de hotéis. Hoje o distrito Art Deco, o maior conjunto de estruturas Art Deco no mundo, gera bilhões de dólares em diversas atividades devido à preservação da identidade de Miami Beach. E a população local desfruta igualmente da preservação.

5.   Você sabia que cidades de qualquer tamanho podem ouvir sua população para definir um projeto de revitalização de larga escala? Dizer que Porto Alegre é divergente em grupos segmentados ou que é grande demais não são argumentos fundamentados? O processo de participação em projetos de larga escala é feito por cerca de 25 anos aqui nos Estados Unidos e modelos similares são feitos na Europa, Rússia e outros países. Você sabia que pontos divergentes não são empecilho para um resultado final que agrade a todos? Que tudo depende de esclarecimento e da metodologia aplicada à participação? Você sabia que Puerto Madero foi 100% definido pela população? E que não foi licitação, mas competição de arquitetura e somente DEPOIS foram buscados investidores? Esse é o processo correto, democrático, de se fazer as coisas. Quando buscar exemplos em outros lugares revitalizados, pesquise qual foi o PROCESSO. Foi autoritário? Foi top-down ou foi participativo?

6.    Ainda, você sabia que esse projeto recebeu nota 20 de 100 pontos quando feita a mesma análise arquitetônica aplicada nos cursos superiores de arquitetura? Que esse projeto não passa a cadeira de estúdio do primeiro semestre? Ou seja, é inferior em qualidade a projetos de alunos? Ou ainda, que suas idéias estão, no mínimo, setenta anos defasadas?

Mas leia o texto, muito mais está explicado ali.

Aceitar esse projeto não é apenas ser A ou B, azul ou vermelho, gremista ou colorado, direita ou esquerda, pro-shopping ou não shopping, etc.

Aceitar esse projeto é ser a favor da violação de seus direitos: direito de participar, direito a um projeto que aumente a qualidade de vida da cidade e direito à informação.

Informe-se e divulgue.


Comentários polidos são bem-vindos. Os demais não serão postados. 
Saudações cordiais.

Obs: o artigo tem 44 páginas e a leitura irá lhe consumir em torno de uma hora.


Dezembro 2010____________________________________________________
Porto Alegre: "Cais Mauá: Por Que Um Só Vencedor?"


Cais ©2010 Roni Stundner. All rights reserved. Usada com permissão.


1.     Jogos Olímpicos

2.     A licitação

3.     Valores altos demais

4.     Soluções ultrapassadas

5.     O velho modernismo

6.     Falta de identidade local e  própria

7.     Outro exemplo fraco dos “vencedores”

8.     “Longe demais das capitais”

9.     Tendo medo do muro

10.  Sustentabilidade precária

11.  O que fazer?

12.  Todas as idades

13.  O vazio e o skyline

14.  Engenharia e Arquitetura

15.  Quero Mais

16.  Referências Bibliográficas

17.  Agradecimentos

18.  Background


1. Jogos Olímpicos

O fato da licitação ter só um vencedor representa um fracasso administrativo em formulá-la realmente aberta e internacional. Desde o princípio, as diretrizes que nortearam o processo conduziam a esse resultado: a pobre escolha de uns poucos ou apenas um vencedor.

Para  Porto Alegre é vexatório ter só uma proposta. É passar a noção de que o mundo não está interessado em nós e que existe apenas uns poucos arquitetos e empresários que gostariam de desenhar e explorar a área. Isso não é verdade. O fato de termos apenas um vencedor é resultado de uma licitação mal elaborada, mal divulgada e mal conduzida.

Como que empresas e profissionais que participam na elaboração do estudo preliminar podem também participar da concorrência? É como dizer: “A concorrência está aberta a qualquer empresa que queira participar, mas um detalhe: vocês terão que trabalhar três anos em três meses.” É como participar dos 100 metros rasos da olimpíada e ter participantes já a 8.33 metros do final.

A licitação deve ser anulada pelo novo Governo do Estado do Rio Grande do Sul e nova competição deve ser aberta seguindo o regulamento de competições internacionais de arquitetura da UNESCO-UIA (UIA-Union Internationale des Architectes). (http://www.uia-architectes.org/texte/england/Menu-7/UIAguideIC.html)

O texto abaixo aponta as razões pelas quais Porto Alegre merece uma centena de idéias e não somente uma, a exemplo de Puerto Madero, na Argentina, que obteve 96 propostas e 3 vencedores.


2. A licitação

Eu nunca participei de uma licitação. Há mais de uma década dedico-me ao ensino, mas fiz bem mais do que escrever artigos pelo Cais. A minha indignação com o estudo proposto foi tanta que mobilizei outros colegas arquitetos aqui em Miami para montarmos um consórcio de empresas e participarmos também, ainda que não concordasse com o formato da licitação. A intenção era oferecer uma contra-proposta.

Conseguimos engajar um dos maiores nomes em urbanismo nos Estados Unidos, o arquiteto Bernard Zyscovisch e acreditem, o projeto foi recebido com extrema euforia, um projeto excitante, interessante, de peso. Sim, Porto Alegre pode e deve ter a atenção do mundo da arquitetura. 

Conseguimos também empresas empreendedoras e de construção entre as 500 maiores do Brasil. Estas eram de São Paulo, que nem se quer sabiam da licitação… Porém, desde o começo as frases que mais ouvi foram: “O prazo é curto”; “O prazo é curtíssimo”; “Não dá mais tempo!”.

As maiores preocupações eram com a dificuldade de fechar parcerias em prazo tão curto e o nível de detalhe de informação técnica exigida. Essa não era uma competição de projeto de arquitetura conceitual apenas e sim de um anteprojeto de todos os sistemas, o que geralmente leva vários meses para ser feito (Estado do Rio Grande do Sul (RS), p. 76). Não conseguimos fechar todos os acordos de parcerias e muito menos desenvolver a proposta. Simplesmente, foi uma missão impossível, mesmo que nenhum dos participantes fosse marinheiro de primeira viagem.

As imagens da proposta “vencedora” ainda são conceituais. Será que ela realmente cumpriu com o que foi exigido? Onde estão os desenhos? Será que foram fornecidos em outubro? E que critérios foram usados nos itens de avaliação? Que notas o projeto recebeu? Como avaliar, por exemplo, a acessibilidade universal, item exigido, sem desenhos?

Segue abaixo tabela a ser preenchida pela comissão julgadora: Que critérios foram usados para avaliar o projeto e que pontuação o projeto recebeu? Completar todos os pontos de interrogação:

Tabela 1: Proposta Cais Mauá Porto Alegre: Informação não divulgada à comunidade: Como o projeto foi avaliado e que notas recebeu? (RS, p. 79, 2010).

O texto da licitação foi deficiente. Na questão da acessibilidade, por exemplo, não houve citação de nenhuma norma ou código a ser seguido. Como avaliá-la sem parâmetros? Se não existe uma norma específica brasileira para o assunto, o ADA (American Disabilty Act) deveria ter sido incluído e exigido. Assim como o critério LEED (Leadership in Energy and Environmental Design), o ADA também foi desenvolvido para ser aplicado universalmente. As pessoas que virão para a Copa e Jogos já estão acostumados a conviver com o ADA. Na verdade, eles esperam encontrá-lo no Brasil. Será uma frustração muito grande se isso não acontecer.

A acessibilidade, para deficientes físicos, idosos e transporte de carrinhos de crianças deve ser entendida por todas as culturas de uma mesma maneira simples, assim como a linguagem/esquema/fluxo dos aeroportos internacionais é a mesma. Se não fosse, seria extremamente complicado mover culturas diferentes neles, as pessoas se perderiam. 

A pontuação para arquitetura e urbanismo (RS, p. 79), além de peso baixíssimo, foi sem sentido. Façamos uma comparação com um aeroporto novamente, sendo 100 pontos a nota máxima: se o aeroporto (urbanismo) fosse mais ou menos, nota 70; se a rampa até avião (acessibilidade) fosse ótima, nota 100; mas se o avião (arquitetura da edificação) não voasse, nota 40, a proposta qualificava. Ãh? Isso mesmo, pois atingia 70% na média dos três itens, ou seja, um aeroporto onde você chega até a poltrona do avião, mas não sai de lá.

Se eu fosse parte dos críticos a avaliar a proposta, a minha nota para a arquitetura da edificacão seria 20 e a do urbanismo 40. Quanto à acessibilidade, é necessário ver os documentos gráficos, mas só com as duas primeiras o projeto já não passava.

Entre os defeitos administrativos faltaram os anexos. Incompetência premeditada? Só esse fato, aqui nos Estados Unidos, já justificaria o cancelamento da competição. A informação não pode ser acessível a alguns (os que elaboraram a proposta e participaram) e não a todos.

A divulgação internacional foi precária: texto em português e nossa herança à complicação. A burocracia: de que cada documento em língua estrangeira fosse autenticado no consulado e traduzido por tradutor juramentado (RS, p.23). E nem se atreva a mandar uma pergunta que não seja em português, pois não haverá resposta. Provavelmente o staff do governo não fala inglês. Falta de visão? Ou achar que o mundo deve falar a nossa língua?

A primeira coisa que pensei depois de imprimir o edital: “Como que eu vou divulgá-lo e convencer os profissionais daqui com esse texto em português? Vou ter que traduzir tudo isso?”. Felizmente, em Miami 65.8% são latinos (U.S. Census Bureau), a maioria das pessoas fala espanhol e há muitos brasileiros. Mas Miami é uma exceção, isso não seria o mesmo num escritório na Rússia ou Alemanha.

Como se não bastasse, o vencedor teria que pagar o custo do estudo, mesmo que não fosse mandatório utilizá-lo. Valor: R$ 700.000,00 (RS, p.40). Numa competição, ninguém é insano de usar a proposta conceitual do concorrente. Era como uma “multa”. O participante já iniciava em desvantagem financeira, pois além do custo de desenvolver a sua própria proposta teria que pagar também o custo da proposta do estudo, mesmo que fosse para jogá-lo no lixo. Entende-se o absurdo?

O estudo foi totalmente desnecessário, uma perda de tempo e dinheiro. Tornou-se uma ferramenta de influência popular. Estudos técnicos, de viabilidade ecônomica, impacto ambiental e outros são cabíveis, porém quando se contrata um arquiteto, cabe a ele/ela propor soluções e não ao cliente pré definí-las. Cabe ao cliente definir programas (funções), critérios de design, etc, mas não sugestão de resultado final. É como o paciente dizer: “Eu preciso de cirurgia no coração”. Não cabe a ele definir o diagnótico, mas ao médico. Não cabe ao Estado definir o projeto conceitual, mas a cada um dos arquitetos participantes da competição. Se existem exigências legais de ser feito, a legislação está inadequada, não foi elaborada por quem entende de processo arquitetônico. O perigo do estudo arquitetônico ser apresentado antes do resultado final da competição é que engessa a mente da comunidade e dos políticos para outras opções.

Há uma distorção na noção de tempo de que esse tipo de licitação e projeto devem se arrastar por anos, décadas. Não, as coisas devem ser resolvidas rapidamente, em todas as esferas: jurídicas, legislativas e construtivas. Se o Cais é federal ou estudal, o cidadão quer resultados. O próprio Lerner, na sua palestra no 54° Congresso Mundial da IFHP na PUC, em novembro de 2010, onde o Cais estrategicamente não entrou, o que me chamou a atenção foram os prazos de concepção, desenvolvimento e construção dos projetos em Curitiba: MESES!

“Três anos para a mudança de uma cidade”, declara Lerner no congresso. Para isso é preciso “vontade política, visão solidária e estratégica”, continua ele. Nesse sentido sua eficácia administrativa é bem norte-americana: Just do it, the right way and right away. Lerner é um fantástico administrador, um excelente comunicador, um estrategista e extremamente criativo em soluções de gestão não ortodoxas. Que o contratemos para liderar a revitalização do Cais e não para desenhar o Cais.

Definitivamente essa licitação não foi formulada para novos entrantes, forjando favoritismo. Foi injusta, não transparente, técnica e administrativamente incompetente. Daí o resultado pobre, forçando a população a crer que precisa aceitar uma única idéia, uma única proposta, porque ninguém mais é capaz ou interessado em competir.

Apoiar essa proposta é tolerar esse comportamento político–administrativo sempre abaixo das expectativas. Basta.

Noivos e Cais ©2010 Roni Stundner. All rights reserved. Usada com permissão.


3. Valores altos demais

Sim, há empresas que podem bancar R$ 350 milhões de reais (mínimo exigido na licitação), mas questiono se esse valor é realmente necessário. O valor alto foi um empecilho a mais. Entretanto, uma construtora que contatei considerou o Cais Mauá um porto pequeno demais para investir… Ás vezes eu sentia como ter o sapatinho de cristal da Cinderela nas mãos: precioso, mas grande para uns, pequeno para outros. Eu precisava achar, urgentemente, a empresa certa.

Em orçamento de obras, se não há problemas estruturais e nem de fundações, se não há equipamentos mecânicos sob medida, como elevadores, escadas rolantes, etc, os custos de recuperação não são astronômicos. A própria licitação informava que os armazéns e prédios estão em condições gerais regulares. O peso pesado dos investimentos nesta proposta não está em recuperar as estruturas históricas, mas sim na construção do shopping e das torres.

Veja a tabela abaixo. Apenas para uma estimativa preliminar… Se usarmos o CUB (custo unitário básico) de novembro deste ano para atividades comerciais em padrão normal… Na verdade, o que temos são galpões, com um CUB ainda mais baixo, mas vamos fazer de conta que nossos estabelecimentos serão mais sofisticados. Se fôssemos construir todas as estruturas do Cais do zero, sem incluir o custo das fundações, das áreas externas, despesas de projetos, etc, precisaríamos de uns R$ 44 milhões de reais. Como é recuperação, vamos dizer que custem uns 60% disso, o que é uma estimativa alta visto que a maioria das estruturas está nos trinques. Então, estamos falando de uns R$ 27 milhões. 

Ainda que precisemos mais alguns milhões para paisagismo, pavimentação, mobília externa, iluminaçao, etc… nem de longe são R$ 350 milhões.


Porto Alegre não precisa desse dinheiro todo para revitalizar o Cais.

Tabela 2: Valor estimado de recuperação das edificações existentes no Cais Mauá, Porto Alegre, com base nas áreas publicadas no Edital de Concorrência (RS, 2010) e CUB novembro 2010.

A imprensa divulga que os “vencedores” farão investimentos de R$ 400 milhões (Favero, 2010). Ok, mas qual é o breakdown desse investimento? Qual o percentual que está sendo investido no Cais histórico, no prédio das docas, em landscape, no muro e em infra-estrutura destes itens contra o que está sendo investido nas torres e no shopping? Essa informação é de suma importância e a população tem o direito de saber. 

Tabela 3: Tabela a ser preenchida pelos “vencedores”. Qual o breakdown do investimento?


Se existe todo esse recurso privado para investir, que adquiriram as áreas do entorno, as muitas estruturas dilapidadas e até mesmo vazias. Que ali sintam-se livres para desenvolverem os seus “marcos arquitetônicos” como desejarem e não em terra pública. E quiçá revitalizem o Cais como é, sob troca de benefícios em impostos por melhorias no espaço público ou mesmo doações, o que valorizará seus próprios prédios. 


Figura 1: Prédios abandonados e terrenos baldios: potencial a ser explorado. Vistas do Cais para a Avenida Mauá.

Não sou contra ao desenvolvimento imobiliário, mas o inteligente e consciente, o que sabe que melhorar as condições urbanas e ecológicas tem retorno sobre o próprio investimento da edificação e aumento da qualidade de vida da sociedade.

Por exemplo, a Escadaria Espanhola (Scalinata della Trinità dei Monti) em Roma: a escada é puramente design arquitetônico urbano que proporciona o “teatro público”, tornando o espaço vivo e gerando valores intangíveis.

A arquiteta, professora e pesquisadora Dr. Gray Read da Florida International University analisa o sucesso de espaços públicos relacionando-os com settings teatrais. Exemplos de espaços vivos no mundo caracterizam-se por uma multiplicidade de ações humanas concorrentes; o “ver-e-ser-visto” e as interações. A função da arquitetura é dar condições para que esse palco exista sem exatamente determinar exatos programas, mas infinitas performances.

“Cada sala é um palco, cada espaço público é um teatro, e cada fachada é um pano de fundo. Cada um possui lugares para entrada e saída, cenas, suporte, e um design que determina relações potenciais entre as pessoas. […] a nobre, sutil e humana arte do teatro é talvez o mais poderoso aliado da arquitetura em explorar o impacto social do design: como o espaço forma ações e relações (humanas).” (Read, Gray 53)

A Escadaria Espanhola valorizou as edificações adjacentes por permitir variados eventos e interações. Não é preciso construir na beira da água, no terreno público, pois a revitalização do Cais, de maneira correta, por si própria trará valor para as propriedades do outro lado da rua. Um exemplo de “teatro público” em Miami é a Lincoln Road Mall e, em Porto Alegre, o Brique da Redenção.

Lincoln Road Mall, uma mistura de comercio de rua, Rua da Praia, feira do Brick, feira de comidas direto do produtor, teatro, arte, etc. Miami Beach, FL. 

Sob o ponto de vista do usuário das torres, não há diferença na vista na beira da água ou na vista do outro lado da Mauá, pois os armazéns são baixos. A avidez pelo waterfront tem justificativa. O negócio é que, em linguagem imobiliária, faz muita diferença uma propriedade estar na beira da água ou não, o valor duplica, triplica! Entretanto, se as torres ou o shopping degradam, por exemplo, as condições de acesso ao longo do tempo com aumento do trânsito, elas mesmas sofrerão desvalorização, mesmo estando na água. A água e/ou a vista, por si só, não garante o sucesso do imóvel. Muitas variáveis podem torná-lo um elefante branco, subutilizado e vazio.

Uma fonte segura, mas não oficial, revelou-me que a área total das torres e do shopping foi determinada por simples matemática imobiliária: tomaram a área total do Cais e calcularam a densidade máxima construtiva como se fosse a mesma densidade do centro. Sob o ponto de vista de arquitetura urbanística, esse cálculo não faz o menor sentido. O Cais não é e não tem obrigação de ter a densidade do centro. Coloco isso como informação não confirmada, porém tudo indica que é essa a mentalidade por trás das áreas estipuladas.

Em arquitetura a ordem dos fatores altera o produto. Um projeto do governo que começa com o empreendedor produz um resultado que maximiza os interesses deste último. A tendência são projetos conservadores, pouco criativos, de retorno quantitativo calculado e do mínimo possível em investimento infra-estrutural. Isso fica claro na maquiagem proposta ao muro. Solucionar realmente o problema com proposta infra-estrutural custa caro, muito caro, e a iniciativa privada não tem interesse em algo que não possa justificar retorno financeiro. 

Só fariam se pudessem cobrar depois, como por exemplo, as estradas com pedágio. Essas empresas são for profit (para lucro). Não há nada de errado nisso, mas é preciso compreender a dinâmica de forças que molda o resultado final da arquitetura.

Já o inverso, onde o arquiteto é contratado primeiro e o investidor depois, os projetos tendem a ser exatamente o oposto: projetos inovadores, bastante criativos, de retorno quantiativo e qualitativo incalculáveis (aspectos intangíveis: bem-estar, projeção internacional, turismo, futuro valor histórico, etc) e o máximo possível de investimento infra-estrutural.

A diferença ocorre devido a uma simples relação de poder. Quem paga o arquiteto é quem manda. Se é o empreendedor quem paga, a influência é sua; se é o governo quem paga, a influência é do público, da comunidade. A exceção à regra são empreendedores que competem em inovação ou que querem transmitir essa imagem à sociedade. Ou, ainda, no caso da contratação de Star Architects. São considerados arquitetos estrelas aqueles que receberam o Pritzker Architecture Prize, o que não é o caso dos arquitetos dessa licitação.


Guindastes ©2010 Roni Stundner. All rights reserved. Usada com permissão.

Esse projeto é uma tatuagem na cara de Porto Alegre por 100 anos. Conceder área pública a construção privada, mesmo sob alocação, é diminuir o espaço público. Uma simples lógica, mas de impacto por gerações. Retornar ao espaço aberto e público leva décadas e talvez nunca ocorra. Aliás, Seattle faz o oposto: compra de volta o que foi vendido antes para aumentar o espaço público.

A terra vaga em Seattle é, principalmente, o resultado de terra subutilizada. A estratégia adotada pela cidade é simples: comprar terra o máximo possivel. “Você não pode confiar no zoneamento para proteger o espaço aberto. Este está apenas seguro até a próxima eleição.” declara o oficial do Belleveu Parks and Community Service (Bowman, 2004, p. 116).  Seattle é a terceira cidade mais sustentável dos Estados Unidos num ranking comparativo com outras 50 americanas (Karlenzig, 2007). Portland (OR) foi a primeira e São Francisco (CA), a segunda.

Miami fez o mesmo erro de Porto Alegre em 1934 quando aprovou (sob protestos da comunidade) o zoneamento público de apenas 6% na orla do Miami River (Mitina, 2009). O rio sofre até hoje o desleixo e esquecimento devido a essa decisão. Se a comunidade não usa, esquece. Gradualmente ele se recupera desde a criação do Miami River Commission, em 1989, que tomou as rédeas da autoridade de revitalização. (Miami River Comission.org)

Aqui em Miami, nos últimos anos, aquelas estruturas das décadas de 30, 40, 50 vieram abaixo para dar espaço a highrisers. Um terreno especificamente despertou o interesse da população: o lado nordeste à ponte da Brickell, em frente ao Miami Circle. A visão ampla de 180° repentinamente descoberta gerou imensa discussão e pressão popular para que a prefeitura comprasse a área de volta. Porém, o valor de mais 70 milhões de dólares tornou a compra impossível para o governo. O prédio foi erguido, hoje o Epic Hotel e JW Marriot Marquis Miami, a vista perdida para até a próxima demolição, se ocorrer, em 80, 90, 100 anos.

E que Porto Alegre faz? Exatamente o erro que Miami fez. Alugar ou vender, não há diferença. Uma torre ou um shopping não é uma cadeira de praia de aluguel que dá para tirar quando quiser da orla pública.

Não há recurso? Busque-se onde quer que esteja. O mundo é muito rico, o que há é má distribuição. Há fund-raising internacionais, há filantropia, há o pequeno investidor internacional, há fundos de investimento, etc. E se com R$ 27 milhões já resolvemos o problema, mesmo em Porto Alegre, a cidade tem dinheiro: são os profissionais liberais, dentistas, médicos, advogados, publicitários, industriários, fazendeiros do interior, empresários, etc. O que é necessário é organizar os esforços. Se cada um, dois, três deles pegasse um armazém, o Cais se renova. A eles seria dada a concessão de exploração, porém para programas especificados pelo projeto vencedor. South Beach e seus prédios Art Deco foram renovados por indivíduos, investidores pequenos com visão, não com mega empresas e nem governo.

Miami Beach, FL, Ocean Drive. Esta nãé uma edificação Art Deco, mas não foram feitas distinções em estilo. Todas foram preservadas.


4. Soluções ultrapassadas

Brasil passa por um boom construtivo para atender as demandas da Copa e dos Jogos Olímpicos. Fomentado pelo crescimento econômico, as cidades vêm a sua chance de tirar do papel projetos estagnados por décadas. Há necessidades urgentes infra-estruturais em praticamente todos os segmentos, como construção e ampliação de estradas, aeroportos, hospitais, e outros. A quantidade de projetos é tamanha que escritórios americanos de arquitetura estão avidamente buscando instalar-se no Brasil. É um mercado novo e extremamente promissor.

Porém, o lado negativo desse crescimento acelerado é a cópia de soluções sem uma análise profunda do contexto original e, principalmente, das tendências atuais de arquitetura e urbanismo que estão constantemente evoluindo.

Por exemplo, shopping center é uma criação americana. Eles surgiram para atender às necessidades da  mulher, que passou a trabalhar fora depois da segunda Guerra Mundial. Ela precisava de conveniência, um só lugar, seguro, com horário prolongado, onde pudesse satisfazer todas as suas necessidades de compra e é, claro, amplos estacionamentos. Por quê? Porque os subúrbios residenciais (aqueles das casas praticamente iguais fora dos centros urbanos), que surgiram nessa época, foram concebidos atrelados ao automóvel. O supermercado também nasceu nesse mesmo período. (Frampton, 1992)

O típico mercado europeu é menor, cujo o dono ou donos, no caso de vários estabelecimentos, é o pequeno empresário. Não se chega de carro, mas a pé e, às vezes, não tem nem mesmo carrinho de compras.

Hoje os Estados Unidos buscam na Europa as soluções para os seus problemas (sérios) de urbanismo e transporte (Beatley, 2000). Enquanto que os novos ricos (nós) buscamos soluções ultrapassadas nos Estados Unidos.


5.    O velho modernismo

Os autores da proposta declaram que ela foi inspirada no modernismo brasileiro dos anos 20… (Favero, 2010) O que nós não precisamos no Brasil é mais modernismo.

“Moderno” não é sinônimo de contemporâneo. Não se esqueçam que “moderno” é, na verdade, antigo. O modernismo começou no fim do século XIX e começo do século XX. No Brasil, o marco é a Semana de Arte Moderna de 1922, em São Paulo.

Entrar no século XXI olhando para um design que já se usou e desgastou não é uma estratégia muito inteligente. O modernismo evoluiu; hoje já passamos do pós-modernismo! Estamos vivendo o Technoism (Norman Foster, Richard Rogers), o Neo-Racionalismo (Aldo Rossi, Álvaro Siza), o Desconstrutivismo (Frank Gehry e Zaha Hadid), o Ecoism (Tjibaou Cultural Center de Renzo Piano), o Metaracionalismo (Rem Koolhaas e Daniel Libeskind), etc.

Portanto, dizer que Porto Alegre ficará “moderna”, no sentido de contemporânea, com um projeto modernista é dizer que ficará defasada décadas.




 Feira do Livro ©2010 Roni Stundner. All rights reserved. Usadas com permissão.


6.    Falta de identidade local e própria

Os autores da proposta declaram que as idéias do projeto contemporaneidade, conectividade, contextualização, criação de um forte marco arquitetônico e valorização do espaço público (Favero, 2010)

A contemporaneidade está defasada. A contextualização é inexistente. A conectividade não foi suficientemente desenvolvida como conceito. O design é insignificante e não a classifica como marco arquitetônico. A valorização do espaco público é chover no molhado, isto já estava implícito na licitação, todos os concorrentes iriam desenvolver essa idéia.

Já discutimos a contemporaneidade no item 5. Vamos às demais.

· Contextualização:

A proposta poderia estar em qualquer lugar do mundo. Ela não está conectada à Porto Alegre e não tem identidade própria.

Intervenções urbanísticas que valorizam o local começam com uma análise detalhada de fotografias antigas. É preciso entender os erros e os acertos do passado para projetar o futuro. Além da história, a geografia, o clima, os materiais, as técnicas, a cultura e até mesmo a arqueologia do local devem ser observadas. A arquitetura da edificação também deve fazer uso dessa análise. Isso não quer dizer que o design final será de época, mas pode integrá-los ao design reinterpretando-os, o que chamamos de abstração.

Um exemplo bem sucedido de contextualização é o Centre Culturel Tjibaou na Nouméa, New Caledonia, pelo arquiteto Renzo Piano.

· Conectividade:

A idéia de uma rampa conectando o Trensub ao Cais e ao Mercado é boa, mas daí dizer que é o resultado do projeto ser baseado na idéia de “conectividade” é um exagero. Se fosse assim, o próprio Trensurb teria esse conceito, o que não é o caso, pois ja’ existe conexão com o Cais.

Para informação geral da nação, para todos aqueles que ainda não sabem, já existe uma conexão subterrânea entre o Mercado e o Cais, provavelmente construída durante a construção do Trensurb (ver fotos abaixo). Sim, essa passagem “secreta” me foi informada pelo Bacharel em Turismo e Mestrando em Geografia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Otávio Augusto Diniz Vieira, que está pesquisando o Cais Mauá e Puerto Madero.

Por que ninguém, ou quase ninguém, a usa? Primeiro falta sinalização do tipo: “Por aqui, Cais Mauá”. Segundo, porque o pedestre não tem razão de ir ao outro lado. Se o Cais for revitalizado e se colocar uma plaquinha haverá fluxo de pedestres, as pessoas a utilizarão. A passagem é limpa, segura, ampla e está em excelentes condições. Portanto, se quiserem economizar dinheiro, as rampas propostas para o Trensurb em frente ao Mercado Público podem ser cortadas do projeto sem maiores consequências.

Figura 2: Passagem subterrânea existente entre o Cais Mauá e o Mercado Público. Falta o estabelecimento de ponto de interesse (revitalização do Cais) e sinalização para que seja efetivamente utilizada. Centro de Porto Alegre, RS.

· Design (“marco arquitetônico”?):

As torres: As formas básicas não ajudam. São como peças de um jogo infantil: prismas triangulares em cima de caixinhas de fósforo. Usar geometrias básicas e ainda causar sensação é um desafio arquitetônico enorme.

O Congresso Nacional de Oscar Niemeyer, em Brasília, não se tornou um ícone por acaso. A razão está na força da simplicidade geométrica, mas na originalidade como foram arranjadas, nas proporções, nos espaços vazios, no perfil no horizonte, na relação e a conexão ao contexto construído (posição no grid urbano) e natural (o sol se põe entre as torres). Nada disso não foi atingido nessa proposta.


Figura 3: Arquitetura explorando o espetáculo natural. Pôr-do-sol Congresso Nacional, Brasília, DF.


Por quê aqueles cortes nas torres na parte de baixo? Se deram conta que a vista estava para aquele lado e tiraram um pedaço? Esse é um movimento bastante importante e precisa ter uma justificativa. E no sudoeste? Grudaram uma abinha para proteger do sol?

O shopping: Este é uma linha curvilínea fechada. Se o conceito é conectividade, então seria uma forma que ligasse pontos. De onde veio a forma de ameba do shopping? A espessura e o espalhamento descontrolado, de qualquer jeito pela rua, é o típico chiclete verde esmagado no asfalto.

O que as formas orgânicas do shopping têm a ver com as formas triangulares das torres? O que a água do muro tem a ver com a shopping? Por quê uma cortina d’água? O que cachoeira tem a ver com Porto Alegre? E assim por diante… É um amontoado de partes. Qualquer um que ensine design vê que o projeto não tem conexão nem consigo próprio, muito menos “conectividade” com o contexto ou com Porto Alegre.

Com muito esforço consigo ver um conceito: o de oposição, o das formas curvas de um lado e os das formas retilíneas do outro; da estrutura chata de um lado e as esguias do outro, interligados pelo muro. Mas esse nao é o conceito escolhido e mesmo que fosse, não está funcionando, pois as estruturas estão muito distantes uma da outra e somente de vista aérea se percebe, não sob o ponto de vista do usuário. Se o usário leigo não consegue perceber o conceito, ele não existe.

Setor das Docas: No extremo nordeste, a laje inclinada da praça só tem uma fachada, o lado da grama. O outro lado não foi pensado, “seja o que o Deus quiser”. Como é a vista nordeste do estacionamento embaixo da grama? Será uma vitrine de carros? Para uma proposta que quer ser um “forte marco arquitetônico” (Favero, 2010), esta será fotografada de todos os ângulos e ter só uma face é inadmissível. A estrutura parece um tapete de grama que foi levantado na ponta para esconder a sujeira em baixo: os carros.


Figura 4: Proposta e estacionamento pouco desenvolvido.

Se o design não é de qualidade, apenas as classes sociais mais baixas habitam o espaço público. Se não há manutenção constante, estas também evaporam e os vândalos tomam conta. Para atrair a vasta gama representativa de toda a sociedade o tempo inteiro, não só em eventos, é preciso que o design seja excelente, a segurança implacável e a manutenção primordial.

O projeto é péssimo. Dos cinco itens que se propôs, contemporaneidade, contextualização, conectividade, criação de um forte marco arquitetônico e valorização do espaço público, com exceção deste último, nenhum foi atingido. Os conceitos de design que foram escolhidos foram pouquíssimos desenvolvidos e portanto as estruturas não tem valor arquitetônico. Nota 20 de 100 pontos, só para não dar zero. Valeu o esforço.


7.    Outro exemplo fraco dos “vencedores”

A falta de completo desenvolvimento conceitual parece permear outros projetos do escritório vencedor de Curitiba, como o Museu da Velocidade para a Fittipaldi. Quando vi aquelas “tiras” na palestra no congresso IFHP na PUC em novembro… Me deu um constrangimento enorme. Eu nem podia olhar para a tela. Se o conceito é velocidade e fórmula 1, há muito mais a ser explorado. Depois da palestra, agora em dezembro, como crítica convidada a um design review, lá estavam as mesmas tiras. Não precisei dizer nada, o professor anterior a mim apontou ao estudante sobre o desenvolvimento insuficiente da idéia.

A abstração das pistas de corridas de formula 1 foi usada como exploração da forma. Esse processo de aplicá-las à planta baixa e depois inserir as funções dentro, hoje é considerado pouco sofisticado, para não dizer primário. No momento que chega na percepção do espaço pelo usuário, o conceito já se foi há muito tempo. Segundo Bernard Tschumi (1996) “a pleasure architecture está onde o conceito e a experiência do espaço brutalmente coincidem […]”

As “vistas” ortogonais, as plantas baixas, os cortes e as fachadas não são vistas reais. A pessoa percebe um espaço um de cada vez, pontualmente e em perspectiva. No interior do Museu as tiras viram simplesmente paredes curvas. E ninguém está passando de helicóptero todos os dias para vê-las de cima, no conjunto. 

Numa estrutura bem desenvolvida, o conceito toca o usuário em três niveis: à distância, à aproximação e de perto (interior). Para usar um exemplo brasileiro, a catedral de Brasília de Oscar Niemeyer atende perfeitamente a esses quesitos. Em linhas gerais, o conceito foi, nas palavras do próprio arquiteto, “construir uma catedral que não tivesse a necessidade de cruzes ou imagens de santos para simbolizar a Casa de Deus […] uma escultura monumental transmitindo uma idéia religiosa” (Botey, 1996). Quem vai lá pessoalmente percebe isso: um momento de reflexão e elevação aos céus (à distância, à aproximação e de perto (interior).


8.     “Longe demais das capitais” 1

As cidades hoje competem internacionalmente por recursos, por visitantes temporários e por investimentos permanentes.

Porto Alegre é o aeroporto internacional da Serra em termos de turismo. Porto Alegre não existe no mapa global. Não somos nem um pontinho, apenas um vácuo geográfico. Nem todos os congressos e exposições internacionais conseguiram mudar isso.

Alguém iria gastar o tempo precioso de suas férias, passagem, hotel, cruzar oceanos no desconforto de uma lata voadora, esperar em aeroportos para vivenciar este projeto com os próprios sentidos? Não.

Porém, igualmente importante é criar uma cidade em que o próprio residente desfrute. Discuto este ponto no item 12.



Figura 5: Área das docas – Contraste: automóveis e barquinhos a remo. Quem são os donos desses barquinhos? Da onde vem e para onde vão? Quais são suas necessidades como usuários do Cais? Como aumentar esse uso? Valor: identidade local + turismo + atendimento da comunidade + potencial econômico. Vejam o exemplo de Veneza…


9.    Tendo medo do muro

Lerner declara na imprensa que não se pode ter medo do muro.

Não ter medo do muro é demolí-lo e substituí-lo por outro sistema, ou reduzí-lo à insignificância incorporando-o ao projeto de maneira que sua presença material não faça a menor diferença na integração com a cidade.


Acrescentar uma cachoeira ao muro não é solucão arquitetônica, mas decorativa. O muro continua o mesmo, só que agora estará molhado e iluminado. A proposta tem medo dele e ainda o celebra. É a celebração da barreira. Essa solução não resolve o problema de conexão com o centro.


A imagem da cortina d’água manipula a opinião pública. Mostram o que querem mostrar. A imagem é uma visão noturna. E durante o dia? Água não é azul, é transparente. Água é mais transparente que tinta. Durante a noite pode se usar luz azul, mas e durante o dia? Como será? Vão adicionar colorantes à água (horrível!)? Vão pintar o muro de azul? De branco? Ou vamos continuar enxergando a cor cinza de concreto? Está faltando uma imagem diurna da cortina d’água.

Um projeto de arquitetura bem desenvolvido preocupa-se igualmente com as duas versões: a de dia e a de noite. Elas são igualmente importantes. Quando não há essa sensibilidade por parte do arquiteto uma vira cartão postal e a outra vira banal. Miami investe consideravelmente em sua imagem noturna. Veja o caso da ponte do Metrorail sobre o Miami River e o design de luzes que foi aplicado. Durante a noite é cartão postal, porém, durante o dia, é como se não existisse design. É uma diferença enorme. 


Figura 6: Ponte do Metrorail sobre o Miami River à noite e de dia. Uma é cartão postal e a outra é imagem cotidiana. (Obs: os prédios em construção na imagem diurna ainda não existiam quando a foto noturna foi tirada. Local: SW 2nd Ave e Miami River, Miami, FL.)

Para realmente cobrir o muro de água, sem aparecer o fundo, será necessário muita, mas muita água, milhares de galões por minuto (ver o item 10 sobre sustentabilidade precária).

Água no muro é como colocar um quadro na parede da sala. É decoração. Tira o quadro, está a parede, que aliás nunca saiu de lá. Uma solução paliativa. Se a proposta quer decorar então, ao invés de água que use espelhos protegidos ao choque. Estou ironizando, mas funciona. Espelho é decoração, mas faz sumir as paredes. Sabiam que a indústria de elevadores descobriu que o espelho reduz o vandalismo nas paredes internas? Não só aumenta a sensação de espaço, mas as pessoas adoram ficar se olhando, pois somos vaidosos. É uma estratégia psicológica. Espelho no muro e até o vândulo ficará entretido com sua espinha.

A cortina de água não funciona para ativar o movimento de pedestres. Em arquitetura, a água é um forte elemento de atração humana, mas quando usada em foco, pontual, o que aqui chamamos de focal point. A cortina d’água torna-se monótona quando aplicada em uma longa extensão.

Além disso, a calçada em frente ao muro, o espaço, mesmo sendo expandida é estreita. Esta configuração não proporciona o “teatro público”. Espaços longos e estreitos favorecem o movimento, mas não a permanência. Por exemplo, o corredor da casa é o último a ser ocupado em dias de festa.
Somado ao layout, falta a determinação de pontos de interesse que façam o pedestre mover de um ponto a outro, do lado de fora do Cais.
A solução é deficiente. O trânsito de pedestres na Mauá na calçada do muro continuará sendo o atual: insignificante, mesmo reformado e enfeitado (decorado de água).

Na frente do Colégio Julinho há dois chafarizes com piscinas. Na frente do museu da UFRGS há uma escultura com espelho d’água, datando de 2002. Ambos secos. A lógica é a seguinte: constrói, destrói; recupera, destrói; recupera, gradeia, destrói e deixa destruído. Resultado daqui dez anos: muro sem água, pichado e com grade.

Se observarmos Porto Alegre vemos que as edificações não parecem ter sido pintadas ontem

Manutenção não é o forte dos países emergentes. Se ocorre, ela é abaixo da freqüência recomendada e, quando ocorre, é lenta. A educação de profissionais de engenharia e arquitetura também não dá maiores atenções ao assunto. Ao  menos na minha época não havia uma cadeira “Manutenção Predial e de Obras de Arte” ou “Projetando para a Manuntenção”. Temos muito a evoluir neste assunto. Até hoje as faxineiras se dependuram nas janelas dos prédios para lavar os vidros do lado de fora e todo mundo acha isso normal



Figura 7: Problema: prédios sem manutenção atrás do porto. Além do passado de dificuldades econômicas, não se ensina nas universidades sobre manutenção; não se projeta tendo em vista a manutenção; não se faz manutenção e não se multa a falta de manutenção. Resultado: deterioração do espaço urbano + os olhos se acostumam com o cenário de decadência. Centro de Porto Alegre, RS.


O custo de manter esse sistema da cortina d’água funcionando deve ser considerado no longo prazo. Se fosse insignificante, por quê a maioria das fontes na Brickell Avenue aqui em Miami, no centro financeiro e rico da cidade, estão sendo desligadas? Devido à crise econômica americana? Corte do supérfulo?

Figura 8: Fonte desligada, como muitas outras, na Brickell Ave, dia de natal. (Local: Brickell Ave, Miami, FL.)

Portanto, o que é uma solução realmente de arquitetura e engenharia? Por exemplo, Chicago não construiu um muro, mas elevou as margens do Chicago River. Galveston, no Texas, elevou o nível da cidade e regulamentou o uso do primeiro andar, adaptando-o à possibilidade das enchentes.  Essas não são, absolutamente, as únicas ou as melhores soluções. Precisamos de uma competição de arquitetura (e não uma licitação de arrendamento) que seja realmente aberta e internacional para prover dezenas de soluções que serão o resultado de centenas de cabeças pensantes sobre o assunto.


10.     Sustentabilidade precária

Haverá um green roof no shopping. Ótimo. Mas e nas torres? Onde estão os princípios de sustentabilidade lá? Foram esquecidos?

Sustentabilidade não é só adicionar um green roof, coletar a água da chuva e fazer uso de iluminação natural. Para um projeto tornar uma cidade cada vez mais sustentável deve ir muito além de detalhes construtivos.  As decisões sustentáveis devem ocorrer muito antes, já na escolha do programa.

No aspecto macro, green technologies é apenas um de vários itens que um projeto deve contribuir para uma cidade ser sutentável. Karlenzig (2007) cita quinze aspectos: tempo de deslocamento no trânsito (city commuting), transporte público, congestão do centro urbano, qualidade do ar, qualidade da água, tratamento de resíduos sólidos, planejamento e uso do solo, inovação (city innovation), custo de moradia, risco a desastres naturais, políticas de energia/mudança climática, consumo de produtos agrícolas e comidas locais, economia green  (não poluente), base de conhecimento e, finalmente, LEED (green) edificações. Quantos destes itens a proposta está, realmente, contribuindo para Porto Alegre ser uma cidade sustentável?

Pela lógica da cidade auto-sustentável, esta deve buscar produzir e consumir seus próprios produtos e serviços o máximo possível, para reduzir transporte, armazenamento e embalagem. Shoppings no estilo Iguatemi, Praia de Belas, etc não são sustentáveis per se. Lembrem como eles surgiram no pós-guerra… além do acesso por veículo privado (estacionamentos), eles não promovem o pequeno comerciante e nem a produção/venda local de mercadorias. Eles são mantidos por lojas âncoras, geralmente grandes corporações cujo lucro não fica e não é reinvestido na cidade.

No caso dos supermercados, por exemplo, estes não promovem ativamente o consumo de produtos agrícolas locais e tampoco o pequeno comerciante. Nesse sentido, o Mercado Público Central de Porto Alegre devido ao tipo de produtos e tamanho pequeno das lojas possui características sustentáveis. Seatlle, como a terceira no ranking das greens americanas, possui o Pike Place Fish Market, muito semelhante à versão gaúcha.

Os navios enferrujando devem ser reutilizados no projeto ou em outro lugar. Simplesmente virar entulho em outra parte não é design sustentável. Todos os produtos devem ter em mente a poluição mínima e a maximização do uso de materiais reciclados. O museu da California Academy of Science em São Francisco, de Renzo Piano, por exemplo, utilizou para insolamento térmico material a base de jeans reciclados.

A energia elétrica deve ser produzida, ao menos em parte, na própria estrutura. A água deve entrar e sair limpa, isso significa que o esgoto deve ser tratado também no próprio complexo das edificações propostas.

A licitação não exigia a certificação LEED: “As diretrizes de sustentabilidade para a revitalização do Cais Mauá visam que novas construções atendam aspectos essenciais para uma certificação, sem no entanto, ser necessário a sua concretização”. (p 65). A situação fica dúbia: atendam ao LEED, mas não busquem a certificação? Justamente a certificação é que irá provar que o projeto é de fato, e em que critérios, sustentável.

Quais as garantias que a população terá, se nem mesmo houve transparência na divulgação dos critérios que qualificaram o projeto arquitetônico? Eu sou bastante cética do quão green este projeto será sem uma certificação. É o mesmo que dizer que uma empresa tem qualidade total, mas não é certificada ISO (International Organization for Standardization). Simplesmente não cola, não tem credibilidade.


Figura 9: VALOR: Identidade local + futuro valor histórico + educação da comunidade + turismo. Quantos adultos em Porto Alegre já entraram num navio assim? Quantos não gostariam de conhecer? Quantas crianças não gostariam de entrar nele? Será que um navio desses não fascina a imaginação?


Figura 10: San Francisco Maritime National Historical Park. Museu ao ar livre em San Francisco, CA. Observe detalhe da recuperação do casco. Os nossos navios ficarão assim depois de refeitos.

Um outro problema da proposta: o uso de água. A arquiteta e urbanista catarinense, Fabiana De Luca, radicada em Miami, graduada pela Universidade de Brasília, escolhida para liderar a proposta do Zyscovich Architects para a licitação do Cais Mauá e que pesquisa sobre sustentabilidade, declara por escrito sobre a proposta

Acredito que a cidade mereça mais.  Infelizmente, Jaime Lerner, autor de outros projetos inovadores em Curitiba, decepcionou. A arquitetura que pretende trazer a experiência de cidades ditas globais para Porto Alegre também decepciona.”

A observação não é recalque de perdedor, pois nem chegaram a participar, nem a desenhar uma linha. Água em circuito fechado, água da chuva ou água reutilizada ainda é água. Esse seria o último dos elementos a se pensar em utilizar para cobrir o muro. De Luca acrescenta:

“[…] talvez o elemento mais controverso da proposta publicada  nos veículos de comunicação seja o muro transformado em cascata. Muro criado para contenção de cheias acaba realmente inundado ao virar cascata. Parece piada, e de mau gosto. Moro em local sujeito a inundações e furacões e imagens assim, em cidades com problemas de enchente, não me são nada agradáveis. Cascatas fazem parte do imaginário idílico de todos e muito nos seduzem. Até o ex-presidente Collor gostava. Quem no Brasil não lembra das cascatas da casa da Dinda? Mas usar este recurso no muro da Mauá é totalmente inadequado e pouco criativo. *
Apesar de 70% do planeta ser coberto por água, apenas 3% serve para consumo e o futuro não parece promissor. […] Criar uma cascata artificial desta extensão numa das principais avenidas da cidade seria, no mínimo, pouco educativo. A água precisaria ser bombeada. Qualquer energia utilizada para isto seria um grande desperdício com finalidade apenas estética.
[…] Cascatas artificiais em ambientes urbanos podem  fazer sentido em locais de clima quente e seco aonde são comumente usadas por propiciarem resfriamento por evapotranspiração. Foi assim na Expo Sevilha. Conheço bem o clima de Porto Alegre e é totalmente diferente de Sevilha. Água é o maior patrimônio a ser preservado para futuras gerações.
[…] Um muro sempre será uma barreira e cobrí-lo com água aumenta esta barreira. Outras cidades escolhem ligar os espaços desconectados. Arquitetos e paisagistas usam sua criatividade, instigam a curiosidade e provocam o caminhante, usam escadas, elevadores ou soluções arquitetônicas que incorporem os desníveis. Outras localidades escolhem recursos eletrônicos para interligar os espacos  e mostram a vida acontecendo do outro lado e convidam a ingressar no ambiente. Existem tantas outras possibilidades. Infelizmente apenas uma proposta foi apresentada.”

* (grifo meu ao longo do texto de De Luca).




Lago Guaiba ©2010 Roni Stundner. All rights reserved. Usada com permissão.



11.     O que fazer?

A litação deveria ter começado com uma competição internacional de arquitetura. Poderia, até mesmo, ser segmentada em partes. Primeiro uma competição para o master plan, e depois competições separadas para as edificações definidas no plano master assim como uma outra seleção para o paisagismo.

A imprensa e a população tem comparado o projeto dos “vencedores” com Puerto Madero em Buenos Aires. Se vamos comparar, então vamos realmente comparar. O que ninguém está divulgando é que em Puerto Madero foi uma competição de arquitetura e não uma licitação de arrendamento. 

Os programas foram decididos através de debates com a comunidade e a comissão julgadora era formada por arquitetos exclusivamente. O resultado foram 96 propostas e 3 vencedores (Giacomet, 2008). Se os nossos hermanos tem condições de fazer a coisa certa, nós também temos. Porto Alegre não é nenhum E.T., não somos diferentes do resto do mundo. No 54° Congresso Mundial da IFHP na PUC, em novembro de 2010, exemplos semelhantes foram apresentados em outras cidades. Não há justificativa que essa proposta fraca seja construída em Porto Alegre.

Uma competição de arquitetura pode ser organizada em poucos meses: montagem em um mês, dois meses para apresentação das propostas, seleção dos vencedores em uma semana, detalhamento do projeto 6 a 8 meses. Durante este último período buscam-se os investidores que querem explorar a área.

Uma competição internacional de arquitetura é a criatividade que questiona tudo, todas as restrições. É o momento de ver o Cais como uma canvas branca… um pedaço de solo com suas estruturas históricas a serem preservadas, mas que todo o resto é questionável, até mesmo os códigos. Assim, as idéias fluem, a criatividade expande as possibilidades. Nesse momento, o que é permitido e sugerido pelo programa não necessita ser realmente seguido a risca.

A licitação deve ser anulada pelo novo Governo do Estado do Rio Grande do Sul e nova competição deve ser aberta seguindo o regulamento de competições internacionais de arquitetura da UNESCO-UIA (UIA-Union Internationale des Architectes). (http://www.uia-architectes.org/texte/england/Menu-7/UIAguideIC.html). UIA lista algumas das vantagens de uma competição internacional:
To mark a period or a place (Georges Pompidou Centre - Paris)
  To symbolize a civilisation (Indira Gandhi Cultural Centre in New Delhi - National Museum of Korea)  
  To solicit solutions to new needs (Design of Bioclimatic Housing in Tenerife - Spain)
  To address neglected social subjects (Solutions to problems of the homeless - CINTUS)
  To encourage creativity and innovation
  To reveal new talents
  To heighten the awareness of the public and political authorities
  To boost architectural education
  To focus on the scope of the architect’s function
(Union Internationale des Architectes)




12.    Todas as idades

Discordo da declaração de Lerner à imprensa que  “Você não revitaliza nada sem que o jovem tome conta”. Veja, por exemplo, o Parque Maximo Gomez na Calle Ocho, em Miami. A terceira idade cubana com seus jogos de dominó é que toma conta. É um espaço vivo e ponto turístico.

Em realidade, o espaço público vitaliza de forma ampla onde há diversidade etária, caso contrário, o efeito pode ser negativo, criam-se guetos.

Os jovens aqui tomam conta dos shoppings centers à noite no fim da semana e fins-de-semana. Os pais os largam lá e ficam desacompanhados. Muitos não podem dirigir, não tem idade suficiente para ir a danceterias, nem a bares; são menores de 21. Eles não tem aonde ir. Criou-se um problema, o shopping não é atração noturna para os adultos e, em alguns casos, uma concentração exclusiva de jovens tem causado atritos entre eles próprios. Algums centros estão barrando a permanência de adolescentes e jovens desacompanhados de adultos depois de certo horário.

O outro extremo etário também pode causar problemas. A população de Miami Beach na década de setenta e oitena constituía-se uma maioria de mulheres idosas aposentadas, vindas das regiões frias que escolhiam o clima ameno para sua útima morada; literalmente, vinham para morrer. A idade média da população de Miami Beach era de 70 anos. Pouco importava a praia de águas turquesas, a segregacao etária, associada a fatores econômicos, traficantes e drogas era o cenário perfeito da degradação urbana. Foi um custo muito alto para a cidade que só começou a mudar após grande número de pequenos investidores privados visualizar um novo potencial para a area, conjuntamente ao movimento de preservação das edificações Art Deco.

O Brasil não é mais um País jovem e não está ficando cada vez mais jovem. Na verdade, o idoso está vivendo mais e se mantendo ativo. Percorrendo a Riachuelo numa tarde de sol, vários idosos caminhavam nas calçadas, driblando os buracos. Essa população, vizinha ao Cais, deve ser considerada no projeto. Quais são as suas necessidades intelectuais e físicas? Qual atividades propor e como garantir o acesso fácil e seguro, com a seleção adequada das superfícies para evitar as quedas.

E o espaço público infantil? Onde vai criança, vai pai, mãe e parentes, ou seja, atrai a população economincamente ativa da cidade que revitaliza o espaço público. E se há qualidade de vida, aumenta o valor imobiliário também. Está tudo interligado. A vivência do espaço público na infância desenvolve o senso de apropriação positiva sobre o que é publico, conduzindo a sua preservação e bom uso na idade adulta.

Eu só fui realmente usufruir do espaço público no exterior. E não foi sem traumas; a falta de privacidade perturbava. Recreação ao ar livre para mim era no pátio da casa e hoje, para as crianças, é o playground do prédio, muitas vezes pequeno, limitado em opções e com pouco verde. As crianças aqui consideram o parque seu: fazem piquenique, jogam bola, andam de bicileta, vão a festas de chá de bebê e aniversários dos amiguinhos no parque, brincam na água, nadam na piscina (se houver), patinam no gelo no inverno (sim, até em Miami, sem neve) etc, é uma relação completamente diferente da que eu tive. Para que isso ocorra, novamente, é preciso design de qualidade, investimento, segurança e limpeza (manutenção).

Você sabia que os espelhos d'água na Redenção eram piscinas? Que foram fechados por causa de uma morte com criança? Estamos todos pagando até hoje um acidente, quando poderíamos ter de volta as piscinas no parque Farroupilha.







Miami Beach, FL: piscina pública gratuita para os moradores da cidade, localizada no Parque Flamingo. Durante o verão, os horários são divididos em sessões para que todos possam utilizar e evitar que encha demais. Piscina de natação e para crianças. Ambas tem salva-vidas em turno integral.  Abre às 6:30 da manhã e fecha às 20:30 hs. Você sabia que os espelhos d'água na Redenção eram piscinas? Que foram fechados por causa de uma morte com criança? Estamos todos pagando até hoje um acidente, quando poderíamos ter de volta as piscinas no parquet Farroupilha.


As crianças hoje tem necessidades tão sofisticadas quanto os adultos. Seu espaço necessita ser cuidadosamente projetado, não pode ser um after thought. Acreditar que elas são as mesmas crianças que se empolgavam em brincar nos mesmos brinquedos que povoam as praças de Porto Alegre há mais de quarenta anos sem nenhuma inovação, é o mesmo que dizer que um adulto, não colecionador, se empolgará hoje em comprar uma Brasilia 73 na concessionária. Os automóveis, o telefone, o computador, tudo mudou e os brinquedos nas praças de Porto Alegre ainda são os mesmos da década de 70.

Os brinquedos antigos não devem ser removidos, pois fazem parte da memória coletiva, novos designs devem ser acrescentados de maneira adequada.


Figura 11: Brinquedos infantis estão décadas defasados. Praça Brigadeiro Sampaio, Porto Alegre. Os brinquedos antigos não devem ser removidos, pois fazem parte da memória coletiva, novos designs devem ser acrescentados de maneira adequada.

Não há mais o esfolar do joelho em chão de areião, como ainda temos, e se torrar no sol. Os materiais evoluíram, protegem nas quedas e dos raios ultravioletas. Os brinquedos despertam os sentidos, desenvolvem a destreza das mãos, o movimento e o balanço corporal, permitem a exploração da imaginação e o conhecimento. Essas experiências podem ser obtidas através de produtos pré-manufaturados ou através de arquitetura de landscape.

Entre os adultos, a orla pública bem cuidada vira até cenário de momento especial: em South Beach o pessoal casa na praia. E não é so’ devido à água turquesa, é a limpeza, a segurança, o acesso, a existência de hotéis, etc. Alguém casa na orla do Guaíba ao pôr-do-sol?

Cidade da comunidade é isso, oferece opções as mais variadas a todos, independente de nível social e etário. Portanto, quais as alternativas a todas as faixas etárias que estão sendo propostas na definição das atividades no Cais, nos programas? Que considerações estão sendo feitas às crianças e aos idosos? Um espaço público se vitaliza com diversidade e não com exclusividade etária. 


Figura 13: Comparando skylines (linha vermelha). Observe as variações. Valor do Skyle: motenário e psicológico.



13.    O vazio e o skyline

O Gasômetro tem identidade própria. Além do valor histórico, ele é um ícone, de importância fundamental na identificação do skyline de Porto Alegre perante outras cidades. Skyline é a linha formada quando a cidade encontra o céu. A forma dos elementos, as proporções e a escala do Gasômetro no perfil da capital são perfeitos. E o espaço vazio no seu entorno é tão importante quanto a própria estrutura.

A pausa num texto permite que respiremos; a pausa na música, nos faz refletir. O espaço vazio em arquitetura, seja interno ou externo, é tão potente e físico quanto ao construído.

O vazio é bastante explorado internamente: o pátio do palazzo italiano, o central core do Guggenheim, de Frank Lloyd Wright, e no Museu Iberê Camargo, nas áreas de escada rolante dos shoppings, etc. O vazio nos faz respirar, descongestiona.

Porém poucos arquitetos o utilizam no espaço externo. Só mesmo estando lá, frente a frente, no Seagram Building de Mies van de Rohe, em New York, para sentir o design de gênio… Olhar a fotografia não adianta. Ele recua o prédio, enquanto os outros todos se alinham frente à avenida. A sensação de amplidão e de magnificência é indescritível. É como cair no espaço. O local inteiro se transforma num royal entrance (entrada real) de proporções gigantescas. Os prédios vizinhos criam as paredes desse imenso atrium (saguão) onde as nuvens são o teto.

Mies pregava o quase nada, a quantididade mínima. A sua entrada no Seagram Building é a celebração da importância do nada. Imaginem propor ao empreendedor um recuo várias vezes ao exigido e convencer de que o espaço vazio irá valorizar o prédio, ou seja, exatamente o “deixar de construir”, em plena Park Avenue, num dos metros quadrados mais caros do mundo? O discurso não foi necessário, pois a filha do cliente, Phyllis Lambert, era arquiteta e ela mesma convenceu o pai a contratar Mies. O sucesso desse design conduziu ao aumento dos espaços abertos em torno de prédios altos nas regulamentações do zoneamento nova-iorquino de 1961, três anos após a conclusão do prédio. (Dupré, 1996)

Porto Alegre deve cuidar mais de seu skyline, observando as questões de hierarquia dos prédios, os de frontstage (centro de palco, principais) e os de background (cenário, segundo-plano), as alturas e os espaços vazios entre eles. O skyline tem alto valor monetário e psicológico para a população.

Estima-se que nos Estados Unidos só as mercadorias relacionadas aos skylines (de shows de tv, logos, fotografias, camisetas e souvenir) movimentem bilhões de dólares ao ano. (Barr, 2010). É preciso entender que o conjunto de estruturas é mais importante que um prédio individualmente. “O skyline serve para promover a potência econômica de uma cidade, além do poder de qualquer prédio contido dentro dele.” (Barr, 2010, p. 2)

No valor psicológico, o estudo de Heath et al (2000) sobre o efeito da complexidade visual do skyline nas preferências individuais descreve que há uma relação direta entre bem-estar (pleasure) da população e a complexidade do skyline. Ele aumenta o prazer pela cidade, são os aspectos intangíveis de bem-estar “[…] a gente não quer só comida, a gente quer a vida, como a vida é”. 2

Cada demolição e cada estrutura nova é uma oportunidade para Porto Alegre melhorar o seu skyline. O código de obras e o plano diretor devem considerá-lo, determinando as alturas e os espaços entre as estruturas. O skyline precisa ser planejado e monitorado. A construções devem ser aprovadas somente após análise de simulação tri-dimensional dentro do contexto das estruturas existentes, na vista diurna e noturna. Isso deve ser exigido. Também importante é a silueta do prédio em si. Nem todos precisam, nem devem, ser ícones (o fronstage), mas devido a sua posição no contexto, pode ser chave para o skyline que ele tenha um perfil diferenciado, no topo ou lateralmente.

Já que estamos falando nisso, os entornos da Catedral Metropolitana e da Igreja Nossa Senhora das Dores devem ser “despoluidos” na primeira oportunidade de demolição que ocorrer dos prédios que as obscuram no skyline. As duas possuem siluetas bastante diferenciadas no conjunto.

Nenhuma estrutura deve ser elevada próxima ao Gasômetro, nem mesmo o shopping proposto de três andares, para não destruir o que já está bem. Ali devem ser previstos programas abertos, como marinas, plazas, docas, etc. Antes de construir, a vista à distância do Gasômetro deve ser analisada em todas as direções, de dia e de noite.



Feira do Livro e Guindastes ©2010 Roni Stundner. All rights reserved. Usada com permissão.


14.     Engenharia e Arquitetura

Desde que a educação de engenharia se separou da arquitetura, por volta de 1747 (Ecole des Ponts et Chaussées, a primeira escola de engenharia. (Frampton, 1992)), os pontos de vista também se separaram. Pergunte ao engenheiro e o muro é um sucesso. Pergunte ao arquiteto urbanista e o muro é um fracasso.

Nós, os engenheiros, somos treinados para dar respostas exatas a problemas específicos. Porém, em questões da cidade, uma série de respostas exatas e específicas não são, necessariamente, as melhores sob o ponto de vista social e econômico. Depois ninguém entende por que uma área degradou ou morreu. As cidades são organismos vivos, que respondem a uma intervenção, e não uma coletânea de problemas técnicos. Para a engenharia, se o ser humano atingir o seu objetivo de forma eficiente, segura e com conforto físico, a missão do projeto está cumprida. É uma ciência exata; não é uma ciência humana.

Nós, os arquitetos, somos treinados para uma visão ampla que considera, principalmente, a experiência humana. A Alemanha já valoriza isso há muito tempo. Segundo o arquiteto, professor, pesquisador e atual diretor da School of Architecture da Penn State University, Nathaniel Belcher, a Alemanha é o país que melhor paga os arquitetos no mundo.

O serviço ou projeto de engenharia quando é bom, não incomoda. Se o muro realmente tivesse sido um sucesso em ambas disciplinas, de engenharia e arquitetura, não seria alvo de tantas discussões por todos esses anos. Seria, no mínimo, neutro, no máximo, cartão postal. Só isso já prova que, para as coisas funcionarem, a arquitetura deve reger e a engenharia responder, numa contínua troca de informações.

A relação da populacão com ponte do Guaiba, por exemplo, sempre foi tranqüila e motivo de orgulho. É uma dama que funciona elegantemente bem desenhada. Ultimamente ela tem dado os problemas, tem incomodado, pois, na verdade, já deveria ter sido auxiliada com uma nova ponte há muito tempo atrás. As pontes não são projetadas para uma suportar uma demanda crescente infinita.

O muro é um abacaxi que nos foi deixado de herança. Se as pessoas soubessem, quando foi erguido, tudo que passamos hoje, teriam considerado outras soluções. A proposta é um remendo à questão do muro e não uma solução. Em construí-la, deixaremos um abacaxi ainda maior para as gerações futuras.


15.     Quero MAIS

A licitação é uma afronta à profissão de arquitetura. Está tudo errado, do começo ao fim; do processo ao conteúdo. É como se todos nós fôssemos incompetentes ou ignorantes. Como se não soubéssemos como juntar as peças dos interesses das diversas partes. O Arquiteto é o cientista da cidade, somente ele tem a formação para considerar todos os aspectos: técnicos, econômicos, sociais, culturais e artísticos.

Para fazer o máximo bom uso de suas capacidades, deve ser ouvido e não imposto nele e na comunidade qualquer proposta. De médico e louco todo mundo tem um pouco. Eu diria que de arquiteto também. O cliente, o empreendedor, o Estado que impõe as suas soluções baseadas somente em retorno financeiro, desenvolvimento econômico, ou solução técnica corre o risco do erro, além de perder um retorno ainda maior, o aumento da qualidade de vida e, até mesmo, de entrar para a história como o sponsor de arquitetura e urbanismo de qualidade. Nessa top arquitetura, 2+2 pode ser 5, 10, 20, 100… com os mesmos recursos ou menos, se consegue muito mais e muito melhor.

Porto Alegre não tem a obrigação de aceitar essa proposta “vencedora” como legítima. Numa cidade que presa pela democracia e participação, ela passou por cima de todo mundo. Apoiá-la é apoiar a falta de ética professional, a falta de transparência na seleção do projeto e a incompetência em gerar um design de qualidade.

Ao movimento “Quero Cais”, proponho que se unam ao movimento

                   Quero Cais, mas Quero MAIS”.

Não aceitem qualquer coisa por desespero que nada sai do papel. Em planejamento estratégico, não se olha só para o passado para prever o futuro. O futuro não será igual ao passado. O futuro a gente muda, o passado, não. Exatamente esse é o momento propício de se fazer a coisa certa.

É preciso uma mudança de atitude, de exigir o que temos direito. A população não pode esquecer que, num regime democrático, quem tem realmente o poder é ela e não os representantes do governo. Estes receberam uma concessão do poder pela própria sociedade. O Brasil não é mais devedor, é credor, a situação hoje é outra. Portanto exijam que o Cais seja feito da maneira correta, com uma competição internacional de aquitetura aberta e transparente, e não se contentem com menos.

Caso contrário, nada irá mudar. Continuaremos a invejar as ruas limpas e sem pichação dos países desenvolvidos, os carros de mudança automática acessível a qualquer um e mais seguros nos países desenvolvidos, a segurança das ruas dos países desenvolvidos, a escola pública exemplar dos países desenvolvidos, as estradas de pista dupla dos países desenvolvidos, os trens dos países desenvolvidos, a justiça rápida dos países desenvolvidos, etc, etc.

Na falta de outro, sigam o modelo de organização e seleção de Puerto Madero, que é um passo para garantir um processo justo e tecnicamente correto. Escolham pessoas competentes, honestas e altruístas para formar a comissão representativa julgadora regida e orientada, obrigatoriamente, por um grupo de vários arquitetos, de várias especialidades, do Brasil e do mundo. Não há como fazer uma cirurgia sem médico.

A arquitetura não é, sozinha, a solução de todos os problemas sociais, econômicos e ecológicos, entretanto ela dá condições à melhoria. Quando não observada, entretanto, o efeito é a decadência da qualidade de vida nas comunidades.

Unam-se. Concentrem-se nas suas similaridades e não nas suas diferenças. 

Mantenham a mente aberta, cedam nas pequenas coisas e concentrem-se no macro.  Busquem no mundo afora os caminhos já trilhados por outras cidades. Os exemplos estão por toda a parte…




16.     Referências bibliográficas:

 Agnoletto, M. et al. Masterpieces of Modern Architecture. New York: Barnes & Noble, 2006.
Barr, Jason. “Skyscrapers and Skylines: New York and Chicago, 1885-2007”. Diss. Rutgers Univeristy, Newark, 2010.
Botey, Josep M, Oscar Niemeyer, de V. C. Sáenz, and Graham Thomson. Oscar Niemeyer. Barcelona: Gustavo Gili, 1996.
Bowman, Ann O'M., and Michael A. Pagano. Terra Incognita: Vacant Land and Urban Strategies. Washington, D.C.: Georgetown University Press, 232p. 2004.
Beatley, Timothy. Green Urbanism: Learning from European Cities.  Washington, DC: Island Press, 2000.
Dupré, Judith. Skyscrapers. New York: Black Dog & Leventhal, 1996.
Estado do Rio Grande do Sul. Edital da Concorrência N° 001/2010 - /RS. 8 Julho 2010.
Favero, Daniel. “Cais Mauá busca inspiração no passado para projetar o futuro”.12 Dez 2010. Terra . 21h36.
Frampton, Kenneth. Modern Architecture: A Critical History. London: Thames and Hudson World of Art, 1992.
Giacomet, Luciane. Revitalização Portuária: Caso Puerto Madero. Diss. Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Porto Alegre: 2008.
Google.  
Heath, T. Smith, S.G. and Lim, B. “Tall Buildings and the Urban Skyline: The Effect of Visual Complexity and Preferences”. Environmental and Behavior, 32 (4), (2000): 541-556.
Karlenzig, Warren, and Frank Marquardt. How Green Is Your City? The Sustainable US City Rankings. Gabriola Island, B.C.: New Society Publishers, 2007.
Melvin, Jeremy. Isms: Understanding Architectural Styles. New York: Universe, 2006.
Miami River Comission.org.
Mitina, Irina. Miami River 5. Miami: lulu.com. 2009.
Read, Gray. “Theater of Public Space: Architectural Experimentation in the Théâtre de l´espace (Theather of Space), Paris 1937”Journal of Architectural Education, (2005): 53-62.
Tschumi, Bernard. Architecture and Disjunction. Cambridge, Mass: MIT Press, 1994
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17.     Agradecimentos:
Arquiteta e Urbanista Fabiana De Luca (Miami);
Arquiteta e Urbanista Juliane Moraes (Miami);
Bacharel em Turismo e Mestrando em Geografia UFRGS Otávio Augusto Diniz Vieira (Porto Alegre);
Gilberto Simon (Porto Imagem, Porto Alegre).
Roni Stundner (Porto Alegre)

18.     Background:
Adriana Schönhofen Garcia
Engenheira Civil, MScEng & MArq
CREA/RS  079889

Experiência: (1992 a 2011)
- Prática de Arquitetura, Engenharia e Supervisão de Obras;
- Professora Universitária em Arquitetura, Engenharia Civil, Engenharia de Produção e Interior Design;
- Coordenação de projetos internacionais;
- Consultoria em Urbanismo e Arquitetura.

Educação:
- Mestrado em Arquitetura pela Florida International University, Miami, FL.
- Mestrado em Engenharia de Produção pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Porto Alegre,RS Concentração Gerência da Produção
- Bacharelato em Engenharia Civil pela UFRGS, Porto Alegre, RS.
- Técnica em Edificações pelo Escola Técnica Estadual Parobé, Porto Alegre, RS.